sexta-feira, 16 de maio de 2014

ALJEZUR E O BUROCRACISMO HISTÓRICO. Uma estrada que levou séculos a ser construída, por causa da "serpente demoradora" no centralismo político.


A burocracia no nosso país tem origens que remontam à formação do espaço nacional, sensivelmente desde 1252, e que se agudizaria a partir do centralismo de D. João II até aos nossos dias. Com o estado absoluto e o autoritarismo régio, surgiu um fenómeno que, não sendo novo, tornar-se-ia insuportável: o adiamento, a prorrogação e a dilação dos prazos de consecução das obras públicas, especialmente nas regiões periféricas. O Algarve, nesse aspecto, era uma vítima endémica do isolamento e do esquecimento a que a sua extremada situação geográfica o condenava. Fartos de esperar pela construção de uma estrada, o povo de Aljezur aproveitou o retorno de D. Miguel à pátria-mãe, para através das costumeiras felicitações de júbilo, lembrar pela voz da sua autarquia, que desse uma prova da sua renovada autoridade, mandando cortar "o pescoso á serpente demoradora que tem engulido os Santos Papeis já informados com tanto dinheiro inutilmente gasto". Isto é, que acabasse com a burocracia e avançasse com os melhoramentos de que os povos e a pátria tanto careciam. O sentido de oportunidade político dos aljezurenses pede meças ao tempo presente. Aqui fica, transcrito na sua versão original e em primeira mão, o elucidativo documento. A razão dos numerosos dislates ortográficos deve-se certamente à parca instrução do escrivão.

[sumário: Ofício da Câmara de Aljezur solicitando a construção de uma estrada de ligação a Lagoa e Portimão, ao mesmo tempo  que felicita o regresso de D.Miguel]

«Serenissimo Senhor:
A Camara Nobreza e Povo da Villa de Aljezur, commarca de Lagos, Reyno do Algarve, dá Parabens asi mesmo pela Felis chegada de V. A. R. à Capital destes Reynos de Portugal: Fortuna tão desejada, e vem por este modo protestar seos votos de satisfação e Fedelidade.
Serenissimo Senhor:
Tomamos aqui lugar para expor a V.A.R. que tendo repetidos requerimentos para se fazerem as extradas que da dita vila vão para Lagos, capital da Comarca; e a de Vila Nova de Portimão, que ambas se podem fazer com hum conto de reis sendo bem economizados e aplicados por Pessoas zerlozas e entereçadas no bem publico: é moderada despeza comparada com o grande beneficio que rezulta por ser o unico tranzito por onde se podem conduzir Artilharias e carruagens quando persizão circular desta parte para todo o Algarve, e em tão comodidade aos habitantes.
Das repetidas suplicas que temos feito nada mais tem rezultado que informações e avaliações, vesturias de Engenheiros e outras deligencias cujos papeis se achão parados nas Tribunas sem que nos tenhamos noticia alguma deles; rezultando unicamente as despezas cresidas que se tem feito com os informantes os quaes somente estas bastavam para fazer pelo menos trez Legoas de boa Extrada; Pois com dezasseis mil reis se achão já prontas duas Leguas da dita extrada.
Serenissimo Senhor:
Corte V.A.R. o pescoso á serpente demoradora que tem engulido os Santos Papeis já informados com tanto dinheiro inutilmente gasto só em aparatoz.
Sabeçe sem informação que de extradas feitas rezulta utilidade; resta unicamente a V.A.R. mandar aos seos Ministros que sem demora fação rodar esta deligencia pelo expediente de suas obrigações, participandonos offiçiozamente para nos lhe deregirmos os exclarecimentos de que persizarem de forma que chegue a fazer-se as extradas pedidas com o Tributo dos Seriáis aplicados a este fim ou como a V.A.R. milher convier mandar.
Sirvaçe V.A.R. açeitar os nossos çinçeros e fiéis votos de obediencia e acudir ao que expomos como for do seo Real agrado.
Deos Guarde a V.A.R., Aljezur em Camara de 16 de Março de 1828.
O Juiz Presidente, Manoel Marreiro.»
(seguem-se os restantes elementos da vereação que, curiosamente, eram todos analfabetos)

ANTT, Ministério do Reino, Autos de Felicitações, Aclamações, Juramentos  e Outros, Maço 9, 1ª série, doc. nº 106.

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