quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

«O Direito à Felicidade»

No dia 24 de Dezembro, vulgarmente designado por dia da Consoada, vi na RTP2, pelo hora do almoço, um filme intitulado «O Direito à Felicidade». Aconselho as pessoas, inteligentes e sensíveis à cultura, a fazerem uma pesquisa na sua Box, ou no site da RTP Play, para poderem ver este filme, que é um elogio à cultura e à amizade, suscitada pela ternura da eloquência. É um filme de apenas 81 minutos, curto e incisivo, mas que nos faz doer até aos interstícios da alma, ao ponto de, por fim, os mais sensíveis, verterem uma lágrima de nostalgia, de tristeza… de vergonha.
Os nossos professores do ensino básico, nas classes onde a idade começa a despertar nas crianças o gosto pela leitura e a motivar a paixão pelos livros, poderiam aproveitar a projeção deste filme para acicatarem nos seus alunos o prazer da leitura e o deleite da descoberta. E não só, é que este filme é um retrato do nosso tempo, é uma lição de vida, com todos os defeitos e virtudes que rodeiam a nossa sociedade.
A personagem principal do filme é um livreiro, figura respeitável pela sua idade e cultura, que vende livros usados numa pacata cidade italiana. À sua volta gravitam quatro figuras secundárias: um homem do lixo, que resgata dos contentores vários livros destinados ao aterro; um empregado de bar, com aspecto primário que se revela um coração apaixonado; uma servente que procura adquirir fotonovelas para entreter a sua ignorante e fútil patroa; e um pequeno emigrante, tímido, pobre, com um ar famélico, que representa o choque de culturas suscitado pelas migrações dos tempos modernos.
O livreiro chama-se Liberto, um nome invulgar, mas muito apropriado à missão libertadora dos livros. O seu desiderato consiste em fazer com que as pessoas descubram o prazer da leitura e, sobretudo, amem os livros. No fundo do seu generoso coração acalenta a esperança de tornar a leitura num alimento quotidiano da alma, e o livro numa arma de libertação da mente humana. Um sonho quixotesco…, porque ele bem sabe que o mundo gira em torno da ambição, da ganancia e do egoísmo.
A vida solitária, tranquila e generosa deste modesto livreiro, entrecruza-se com a de uma criança do Burkina Faso, de nome Éssien, filho de emigrantes acolhidos naquela pacata cidade italiana, cujos verdejantes horizontes, matizados de diferentes tonalidades, fazem-me lembrar a deslumbrante Toscânia. Entre o livreiro e a criança africana, vai discorrer aos olhos do espectador uma pedagógica lição de amizade e de admiração mútua, em contraposição ao quotidiano racista que assola o nosso tempo. Liberto vai emprestar livros a Éssien, porque este não os pode comprar. Quando este lhos devolve assistimos a um ternurento diálogo pedagógica, que resultará num método de fomento progressivo do gosto pela leitura. Ao ver o filme, lembrei-me do meu querido pai, que usou comigo exactamente o mesmo método. E, quando eu queria dar um passo mais largo do que a minha mente permitia, ele refreava-me a avidez, dizendo: “este livro não é para já, mas fica à tua espera”. E tinha nisso toda a razão, porque sendo a leitura o meio mais acessível e eficaz de libertar o espírito, deve ser doseado na proporção da idade e da inteligência. O equilíbrio entre a compreensão da leitura e a reflexão do pensamento, permitem que o livro se transforme num veículo de transmissão do Saber e da Cultura. A escola ajuda muito no processo curricular da formação intelectual da criança, mas é no prazer da leitura e no convívio com os livros que se processa o autodidatismo, uma forma libertária de vivenciar o Saber e de progredir no conhecimento, escapando ao controlo da Escola. Nunca esqueçamos que o ensino não é livre, e que a Escola constitui em si mesma um dos mais poderosos aparelhos ideológicos do Estado.
Vejam, por favor, «O Direito à Felicidade», um filme melancólico e superiormente encantador, pela forma como demonstra que a liberdade só se alcança pela tolerância, pela inteligência, pelo respeito e, sobretudo, pelo amor. Amar é tornar livre o ente amado. E isso só se percebe no fim, quando Liberto oferece a Essien um pequeno livro, pedindo-lhe que o reserve e o consulte até ao fim dos seus dias. O título desse livro só se revela ao espectador na última imagem do filme.
Para terminar, queria chamar a atenção para o facto de não ser o livro, nem a leitura, o tema principal deste filme, mas tão só a emigração, como derradeira esperança na construção de uma vida melhor. E o que é a vida, afinal, senão uma viagem no tempo. Demonstra-o a forma dramática como Liberto se vai despedindo da vida, em silêncio e em segredo. Ao mesmo tempo que revela ao espectador as páginas de um diário manuscrito, datado de 1957, curiosamente resgatado do lixo, no qual uma jovem criada confidencia que vai partir com o noivo para a América, à procura de uma nova oportunidade de vida, através do sonho americano, uma quimera do pós-guerra.
Vejam como os nossos sonhos do passado, são os mesmos sonhos presentes, sobretudo daqueles que vivem dilacerados pela mais tirânica das opressões: a pobreza. Não há liberdade quando se vive agrilhoado no desemprego, no desconforto, na escassez, na fome e na miséria. De que vale a democracia e a liberdade, quando a pobreza domina e escraviza o cidadão eleitor...
Este filme, em suma, é uma lição que todos deveríamos aprender.
Aqui fica o link para quem deseje visionar esta encantadora metáfora cinematográfica, sugestivamente intitulada «O Direito à Felicidade».

https://www.rtp.pt/play/p12419/e737123/il-diritto-alla-felicita?fbclid=IwAR1xuj8ugf135Y6fQ6H9bVFKVA_Fp5gndejngeC7D7WCsnEou-wq5QFD6IE

terça-feira, 4 de julho de 2023

A Primeira Guerra Mundial, o fim dos impérios na emergência do nacionalismo europeu

Passados cem anos desse desastroso conflito militar, que vulgarmente designamos por Grande Guerra, a Europa mudou muito, e em todos os sentidos. Desde logo na sua geografia política, com o surgimento de novos/velhos países, que desde sempre foram nações, reclamantes da sua identidade, da sua independência, do seu território e, sobretudo, da sua história. Foi a consciência e memória do passado nas pequenas nações, que suscitou a revolta contra a opressão imperialista dos grandes potentados industriais, escudados em colossais forças militares, que desencadearam na Europa a conflagração de revoluções sociais e um consequente choque de interesses coloniais internacionalistas. A Grande Guerra acendeu-se na fogueira do imperialismo e apagou-se na heróica bandeira da democracia e da liberdade. Porém, não se extinguiu… As divergências permaneceram no campo político e económico, o imperialismo dissipou-se, mas subsistiu o colonialismo. E no rescaldo das decisões mal dirimidas adivinhava-se a todo o instante o reacender de uma nova guerra, que permitisse aos vencidos, sobretudo ao orgulhoso povo germânico, obter a desforra da aviltante derrota a que ficara sujeito no «Tratado de Versailles».
Militares de cavalaria do CEP, marchando em Alcântara em
direcção ao porto de embarque de Lisboa, em 1917
No período que precede o deflagrar da I Guerra Mundial há que ter em conta a paradoxal circunstância da Europa estar a viver um período de prosperidade. A indústria do aço progredia incontrolável e avassaladora. A euforia tecnológica desenvolvia-se em todos os sectores, nomeadamente na indústria bélica. As descobertas científicas alemãs, sobretudo na Química, desenvolveram novas indústrias nas áreas da saúde e do medicamento, nos fertilizantes e adubos, nos pesticidas e venenos. A Alemanha era, em todos os sentidos, a maior potência da Europa, em concorrência directa e em franca oposição aos interesses do velho império britânico.
Todavia, restavam do passado várias questões mal dirimidas em sede da diplomacia ocidental, as quais podemos apontar como responsáveis pelo deflagrar do conflito:
  1. - A disputa imperialista entre os países europeus por territórios de África e da Ásia;
  2. - A Alemanha tornou-se numa grande potência, ameaçando a Inglaterra até aí considerada um potentado europeu.
  3. - O nacionalismo cresceu e valorizou-se como ideologia entre os povos que não possuíam autonomia territorial e política, gerando-se conflitos, especialmente na região das Balcãs.
  4. - O imperialismo dominava a cultura ocidental e ameaçava o equilíbrio mundial.

Razões que desencadearam a primeira guerra mundial:

Dentre o variado leque de justificações, que do ponto de vista político socioeconómico, podem ter estado na origem do conflito, destacamos aqui algumas das mais importantes, que poderão ter contribuído para a abertura das hostilidades:
  • A guerra “franco-prussiana” atribuiu à Alemanha os territórios da Alsácia-Lorena, muito ricos e importantes para a França.
  • A Alemanha superara a Inglaterra na produção de aço, na mecanotecnia e na indústria química, tornando-se na maior potência industrial europeia.
  • A Rússia era inimiga dos impérios Otomano e Austro-húngaro, porque sustentava o pan-eslavismo, isto é, a unificação dos povos eslavos que integravam esses dois impérios. A Sérvia estava do lado da Rússia porque pretendia unificar os Balcãs.
  • A “paz armada” ou guerra latente, justificava a formação de alianças militares.
Arquiduque Francisco Fernando da Áustria e sua esposa,
assassinados em Sarajevo a 28-6-1914
As afinidades políticas e os interesses económicos, agenciados pelas principais potências europeias, explicam a formação de alianças militares que resultaram na constituição de dois blocos antagónicos: a Tríplice Aliança e a Tríplice Entente. A primeira, formada em 1882, era composta pela Alemanha, Itália, e os impérios Austro-Húngaro e Turco-Otomano; enquanto a segunda, fundada em 1907, era constituída pela França, Inglaterra, Rússia e Sérvia. As rivalidades históricas e os sentimentos imperialistas tornaram as relações diplomáticas e o trato entre os mercados cada vez mais irreconciliáveis e distantes.
Desde os tempos da Reforma, que dividiu a cristandade, que a Alemanha se tornara inimiga da França, e por arrastamento da  Inglaterra anglicana. Por sua vez, divergências mercantis e litígios territoriais, tornaram a Rússia inimiga dos impérios austro-húngaro e Otomano. Por essa razão a Alemanha juntou-se aos austro-húngaros e à Itália, que depois mudou de lado, passando para a Tríplice Entente. A França, a Inglaterra e a Rússia, três impérios aparentemente incompatíveis, pelas suas históricas idiossincrasias culturais, religiosas, e coloniais, acabariam por dar as mãos numa apressada aliança militar, a Tríplice Entente, para fazer frente ao pangermanismo, uma perigosa ideologia nacionalista que pretendia unificar as nações do eixo europeu. A Sérvia simpatizava com a causa do pan-eslavismo que a colocava ao lado da Rússia, implicitamente contra o império austro-húngaro, que entrara numa escalada de anexação dos estados balcânicos, em conexão com os interesses territoriais da Tríplice Aliança. 
Faltava à eclosão da guerra uma causa próxima, que surgiu a 28-06-1914 com o episódico assassinato, em Sarajevo, do herdeiro do trono austro-húngaro, Franz Ferdinand, morto por um estudante nacionalista sérvio. As declarações de guerra sucederam-se em catadupa. Causou admiração o entusiasmo dos voluntários que se ofereciam para a guerra. Isso deveu-se ao nacionalismo que despontara na Europa. Mas também aos imperialismos, que se consubstanciavam no pangermanismo alemão e no pan-eslavismo russo.
Mapa das alianças formadas no início da I Guerra Mundial,
de amarelo a Tríplice Aliança, os impérios do Eixo europeu
Começava assim a I Guerra Mundial, um conflito há muito esperado por causa das incontornáveis dissensões entre os nacionalismo emergentes das repúblicas novas, e os imperialismos dominantes das monarquias velhas. Em 1915 a Itália entrou na guerra ao lado da Tríplice Entente. Mas foi enganada pela Inglaterra, que no fim não lhe deu os territórios prometidos em África. Compreende-se, agora, as razões que levaram Mussolini a preferir, mais tarde, aliar-se com Hitler.
A Grande Guerra dividiu-se em duas partes distintas: a fase dos movimentos e o longo período das trincheiras.
Na primeira, a Alemanha progrediu imparável até às portas de Paris. No início parecia imbatível, mas passado algum tempo o avanço militar paralisou por falta de meios logísticos, sobretudo combustível para o transporte de equipamentos bélicos. Para não recuar, o exercito alemão resolve resistir na frente de ataque escavando trincheiras. Era o fim da guerra dos movimentos, e o início da paralisante guerra das trincheiras. Centenas de milhares de soldados permanecerem, atolados na lama das trincheiras, onde foram pasto de parasitas (piolhos e percevejos), de fungos e bactérias, ao longo de três penosos anos, sofrendo momentos de angústia e de miséria, em condições infra-humanas. Uma guerra com mais de 10 milhões de mortos, milhares de feridos e mutilados. Um trauma europeu, sobretudo para a França, que foi a principal vítima do conflito, com milhões de mortos e feridos, cidades destruídas pelos bombardeamentos, e uma economia de rastos.
Tropas americanas combateram ao lado da Tríplice Entente,
no auxílio da França arrasada pelos alemães
Em 1917, ocorreram dois factos muito importantes para o desfecho da guerra: em Outubro deu-se a revolução russa, cujo novo governo chefiado por Lenine assinou um tratado secreto, designado “Glasstov”, para sair da guerra, e compensar a Alemanha com a oferta de alguns territórios. O segundo acontecimento decisivo foi a entrada dos EUA na guerra, pois tudo levava a crer que a Alemanha acabaria por vencer o conflito. Começaram por enviar ajuda médica, depois mantimentos e, por fim, numerosos contingentes militares. A adesão americana foi decisiva para a vitória da Tríplice Entente na Grande Guerra.
A 11 de Novembro de 1918, as partes beligerantes assinaram o armistício que poria termo à primeira guerra mundial. O presidente dos EUA, Woodrow Wilson, apresentou uma proposta de resolução da guerra, que ficou conhecida como os 14 pontos de Wilson. Esse documento sugeria que os países diminuíssem os seus arsenais bélicos, optassem por políticas mais transparentes, e, sobretudo, que a guerra terminasse sem vencedores, para que os países contendores assinassem um acordo de paz, sem culpar nem punir ninguém. Sugeria ainda a criação de um órgão internacional, designado por “Liga das Nações”, que asseguraria a manutenção da paz no mundo.
Essa proposta não foi totalmente aceite, porque as nações vencedoras queriam subjugar a Alemanha e obrigá-la a pagar pesadas indemnizações de guerra. Para o efeito, as nações vencedoras reuniram-se em Paris, onde subscreveram o «Tratado de Versailles», que pôs fim à primeira guerra mundial. A humilhação dos vencidos foi tão execrável que viria a constituir-se no principal motivo para a deflagração da Segunda Guerra Mundial.
O «Tratado de Versailles» determinava que a Alemanha era a única e exclusiva culpada da guerra. Definia que a Alemanha não podia ter um exército com mais de 1000 soldados, nem produzir armas, nem tanques, perdendo as colónias que tinha na Ásia e na África. Devolveu-se à França o território da Alsácia e da Lorena. Além disso, a Alemanha perdia todas as suas minas de carvão e de ferro, tendo ainda de pagar avultadas indemnizações aos países vencedores.
A Alemanha em 1919 viu-se compelida a assinar o Tratado
de Versailles, em termos bastante desfavoráveis

Com base no «Tratado de Versailles» criou-se também a Liga das Nações, com sede em Paris. Apresentava-se como órgão internacional para o estabelecimento da paz no mundo, desiderato que nunca logrou alcançar. Os EUA pretendiam que a sede da Liga fosse em Nova York, pelo que se recusaram a participar. Isso condenou a organização ao fracasso. Foi para obstar a essa recusa e a idêntico fracasso que, em 24 de Outubro de 1945, na sequência da II Guerra Mundial se fundou a ONU - Organização das Nações Unidas.
Acresce dizer que Portugal entrou oficialmente na Grande Guerra, como beligerante, apenas em 9 de Março de 1916, em face do aprisionamento de dezenas de navios alemães acostados em portos lusos. Esta decisão foi um golpe político do governo republicano para obrigar a Alemanha a declarar-nos guerra. Na verdade, Portugal detinha o estatuto de neutralidade, e assim se manteve até 1916. Todavia, desde o início da guerra em 1914 que as tropas alemãs vinham sistematicamente atacando as nossas colónias africanas. As forças militares estacionadas em Moçambique, defendiam-se tenazmente, sem, contudo, haver qualquer declaração oficial de beligerância emitida entre as partes. Os lideres dos três principais partidos republicanos, sob a égide do Dr. Afonso Costa, subscreverem um pacto de união republicana, para salvar a pátria de uma possível agressão estrangeira (como a que estava a suceder nas colónias) e, sobretudo, para salvar o próprio regime, obrigando o aliado britânico a aceitar a nossa participação no conflito, reconhecendo as outras nações aliadas na guerra, a existência da novel República Portuguesa.
Ao abrigo do ancestral «Tratado de Windsor», subscrito no séc. XIV por D. João I, que ainda hoje se mantém em vigor – razão pela qual é o mais antigo tratado militar do mundo – o governo republicano mandou organizar o CEP-Corpo Expedicionário Português, que rumou aos campos de batalha da Flandres, onde chegou a alcançar um efectivo de 200 mil homens. Na frente ocidental, espraiada pelos campos franceses e belgas, bateram-se os nossos soldados com bravura e coragem, apesar de mal abastecidos, deficientemente equipados e literalmente abandonados, a partir de 1917, pelo governo germanófilo de Sidónio Pais. Durante mais de um ano, o CEP não recebeu apoios logísticos, nem o indispensável revezamento das suas tropas, o que contribuiu para o descrédito das chefias e para a depressão moral das tropas entrincheiradas no front ocidental. Percebe-se agora o porquê do presidente Sidónio Pais ter sido assassinado no ano seguinte, e o porquê do fracasso das nossas tropas na tristemente célebre Batalha de La Lys, onde se distinguiu a figura mítica desse intrépido soldado que dava pelo nome de Aníbal Augusto Milhais, cujos numerosos feitos de bravura e heroísmo lhe valeram o epíteto de “soldado Milhões”.
Aníbal Milhais,o "soldado milhões", herói
nacional, ostentando o colar da Torre e Espada

A participação de Portugal na Grande Guerra teve o importante efeito de compelir as principais nações europeias, quase todas monárquicas, a reconheceram a existência do regime republicano em Portugal. Por outro lado, conseguiram-se manter as colónias africanas praticamente intactas, e a salvo da rapacidade britânica e germânica. Mas tudo isso teve um custo que não justificou os resultados efectivos dessa participação, que foram em todos os capítulos muito dolorosos e profundamente lamentáveis. Do ponto de vista económico-financeiro foi desastroso, pois aumentou exponencialmente a dívida pública, causando graves problemas sociais nos diversos sectores da vida laboral. Com as finanças públicas nitidamente insolventes, também a vida política, social e cultural se tornaria insustentável, sendo a dívida externa e a exaustão da fazenda uma das causas próximas da revolução militar do «28 de Maio de 1926». Do ponto de vista humano, a participação portuguesa na Grande Guerra teve consequências desastrosas, já que ascendeu a 40 mil mortos, causando uma tremenda sangria na vida social, na organização do trabalho, tanto nos meios rurais como na indústria urbana, e sobretudo no sentimento dos portugueses.
Basta lembrar a existência em França do cemitério militar de Richebourg l´Avoué, onde se encontram sepultados 1.831 soldados caídos em combate, dos quais 238 corpos se encontravam de tal maneira estropiados que não foi possível identifica-los, razão pela qual na sua lápide funerária se encontram registados como “português - desconhecido”.
Tumulação do soldado desconhecido, na Sala do
Capítulo do Mosteiro da Batalha, em 10-04-1921
 

No final da guerra o balanço das perdas humanas foi desastroso: dez milhões de mortos, 20 milhões de feridos, estropiados e gaseados. A Alemanha exaurida, a França devastada pelos combates e bombardeamentos, os impérios russo, alemão, otomano e austro-húngaro colapsaram e fragmentaram-se em novos países. Apesar de todas as desgraças, há que ressaltar alguns factores que resultaram positivos. A emancipação da mulher foi o mais importante. O recrutamento militar fez escassear a mão de obra, surgindo em alternativa a mulher operária, nas fábricas, nos serviços, nos hospitais, e até na retaguarda da guerra. A igualdade e os direitos da mulher no trabalho e na vida económica da sociedade tornaram-se numa evidência que o tempo se encarregaria de demonstrar. O imprescindível papel da mulher na vida social e pública, viria a reafirmar-se vinte anos depois com a deflagração de novo conflito mundial.
No rescaldo da guerra, outras consequências relevantes não devem ser descuradas. Desde logo ao nível da Medicina, com novos medicamentos e importantes avanços na Química e na Farmacopeia. No trabalho, a divisão de funções, a linha de montagem, o Taylorismo, os movimentos sindicais e as ideologias políticas. Os movimentos artísticos na pintura e na música, com o jazz por exemplo. No teatro e sobretudo no cinema, com a cor e o som. Nos transportes, com as epopeias aéreas de Charles Lindbergh e até de Gago Coutinho. Enfim, surgiram mudanças nos hábitos, nos costumes e nas mentalidades. A grande surpresa são os loucos anos vinte, que todos conhecemos da literatura americana e do cinema, cujo expoente se pode fixar na obra O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, que foi soldado do exército americano aquando da primeira invasão de 1917. Além do Jazz e da dança, cuja influência afroamericana era indesmentível, acresce ressaltar a música de George Gershwin para a Broadway, a revolução automóvel pela Fordização da indústria construtora, a motorização das máquinas agrícolas ou o aumento da velocidade dos automóveis, que deu origem aos autódromos e às loucas corridas, de que são exemplo as 500 milhas de Indianápolis. Acima de tudo isso estão as relações humanas, com o amor livre e o namoro espontâneo, a mostrar-se como expressão da liberdade conquistada no pós-guerra. De todos estes excessos resultaria a crise bolsista de 1929, a falência de bancos e empresas, o desemprego, a austeridade, e por fim o nazi-fascismo dos fatídicos anos que precederam a segunda guerra mundial.
Em suma… com a assinatura do Tratado de Versailles, em 1919, pode dizer-se que a democracia venceu em toda a linha. O mapa da Europa rejuvenesceu de vida política e de novos mercados económicos. Os EUA obtiveram o estatuto de primeira potência mundial, que conseguiu manter até hoje, mercê da sua presença militar nos principais conflitos mundiais. A Europa actual, sobretudo no que respeita ao seu mapa político, é muito semelhante ao que resultou do fim da primeira guerra mundial.
A primeira guerra mundial, alterou completamente a nossa percepção da vida social cultural e económica do planeta. Mas permanecemos hoje, como no passado, imbuídos do mesmo espírito Euro-centrista, confiantes na ocidentalização do primeiro mundo. Essa é uma visão deturpada da realidade. A vida é hoje global, mais dependente dos interesses económico do que das influências políticos. Os potentados económicos têm de procurar encontrar o justo equilíbrio e o caminho da paz. A próxima guerra mundial poderá fazer-nos regressar às cavernas e acabar com a civilização, tal qual hoje a conhecemos.

[Resumo da conferência que proferi, em 9 de novembro de 2018, na sessão de encerramento do Ciclo «100 anos depois - Saúde e Cultura» organizada pela Universidade do Algarve].

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

As cédulas fiduciárias, e o dinheiro municipal

No início da I Guerra Mundial, decorrida entre 1914 e 1918, assistiu-se em toda a Europa a uma forte valorização dos metais, utilizados na indústria bélica. Quando, em 1916, Portugal entrou no conflito, notou-se uma grave escassez de moeda circulante, que se agravou até meados da década de vinte. As moedas de prata e bronze foram logo resgatadas pelo Estado, cujas finanças entraram em insolvência. As de cobre, ferro e cuproníquel, ainda em circulação, foram desviadas para a indústria e fabrico de armas, a ponto de deixarem de existir meios de troca.
Em reflexo da guerra desencadeou-se um surto inflacionário devastador, descaradamente visível nos géneros de primeira necessidade, e sobretudo no aumento do preço dos metais. Por isso, emitir moeda ficava não só muito caro, como era de todo inviável.
Face às circunstâncias, o governo recorreu a uma estratégia que havia sido aplicada em 1891, numa crise financeira muito semelhante – isto é, à emissão pela Casa da Moeda de pequenos bilhetes popularmente designados por “dinheiro de trocos”. Esses exemplares, impressos em papel comum ou em cartolina fina, uns muito simples, apenas com a indicação do local e do valor; outros mais elaborados, por vezes com requintes estéticos – divulgando os heróis locais ou as suas belezas turísticas, num requinte de indisfarçável nacionalismo – ficaram conhecidos até hoje como “cédulas fiduciárias”. Este fenómeno, da escassez de metais amoedáveis foi transversal a toda a Europa. E tal como no nosso país emitiram-se cédulas para facilitar as transacções de baixo valor no pequeno comércio, ficando conhecidas como “monnaies de necessite” em França, “emergency Money”, no Reino Unido, e “notgeld” nas nações do trato germânico.
Para obstar à escassez de moeda, o governo autorizou a Casa da Moeda, alguns bancos regionais, as Misericórdias, as Associações Comerciais, e sobretudo as autarquias (Câmaras e Juntas de Freguesia) a emitirem senhas ou cédulas ou papéis de trocos, abrindo-se uma espécie de cascata nacional que jorrou espécimes monetários no valor de 1 até 20 centavos. Este fluxo fiduciário iniciou-se em 1917 e prolongou-se até 1924-25.
O governo mandou a Casa da Moeda emitir cédulas de 2 e 10 centavos, autorizando a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a imprimir cédulas de 5 centavos. Estava aberta a catadupa. No ano seguinte, autorizou 178 municípios a imprimirem cédulas, até ao valor máximo de 10 centavos, sendo apenas válidas no concelho emissor. Em todo o país só podiam circular as cédulas emitidas pela Casa do Moeda.
Em 1924, o Ministro das Finanças, Dr. Álvaro de Castro, proibiu a circulação nacional e regional das cédulas fiduciárias, optando por uma política de rigor orçamental, através de um forte aumento de impostos e da diminuição da despesa pública, com vista a travar a descida do escudo. A exploração mineira colonial e a arrecadação dos metais preciosos depositados nos museus e noutros organismos do Estado permitiram voltar à amoedação dos cunhos nacionais e à revalorização do escudo.
O que ficou dessa grave crise económica foi o testemunho material da escassez de moeda, através das cédulas fiduciárias que se imprimiram um pouco por todo o país, algumas delas de rara beleza estética, a imitarem as notas de banco, mas também a divulgarem os padrões culturais dos concelhos em que foram emitidas.
Aqui ficam, como ilustração, algumas cédulas emitidas nos concelhos algarvios, assim como uma da minha terra, Vila Nova de Famalicão, algumas do Hospital dos Arcos de Valdevez, outras da própria Casa da Moeda, e dois exemplares emitidos na Áustria. O coleccionismo destes espécimes monetários em papel, tem sido alvo de atenção dos mercados da especialidade, nomeadamente dos bancos portugueses, sendo disso exemplo a colecção do Dr. António Cupertino de Miranda, que constitui uma parte do seu valioso Museu do Papel Moeda.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A vila de Monchique nasceu em 1573 ou em 16 de Janeiro de 1773?

Gravura das Caldas de Monchique, pintada em 1812
pelo artista britânico George Landmann
O padre Dr. Francisco Xavier Ataíde Oliveira, publicou no jornal «Província do Algarve», que se editava em Tavira, no rodapé da primeira página, sob a epígrafe «Folhetim», nos nºs 241 a 268, de 29 de junho de 1913 até 18 de janeiro de 1914, o texto integral da «Relação da jornada de El-Rei D. Sebastião, quando partiu da cidade de Évora», da autoria do cronista João Cascão. Trata-se do manuscrito que se encontrava nos “Reservados da Livraria” da Torre do Tombo, sob o n.º 1104, junto do qual encontrei também vários outros manuscritos, de carácter histórico geográfico, com preciosas alusões ao Algarve.
Foto dos princípios do século XX, colorida à mão.
Vê-se a serra ainda muito escalavrada.

Esta "Relação da Jornada de D. Sebastião» ao Algarve", realizada em 1573, foi primeiramente publicada na «Revista de Sciencias Militares», vol.2, de 1886, e quase um século depois, em 1984, editada em livro, com um valioso estudo introdutório do Prof. Sales Loureiro, de quem tive a honra de ser aluno e amigo pessoal.
Mas, tudo isto vinha a propósito de uma breve alusão à aldeia de Monchique, contida na «Relação» de João Cascão, a propósito da visita do Rei D. Sebastião ao Algarve, quando se encontrava hospedado em Vila Nova de Portimão. Diz o cronista a dado passo:
«Na 2ª feira 26 de janeiro [de 1573] partio El-Rei de Vila Nova [de Portimão] ás 4 horas depois da meia noite para Monchique, e são 5 légoas de caminho… Foi acompanhado sómente dos Fidalgos da guarda; no caminho vio os banhos em que muitos doentes achão remedio ás suas enfermidades. Da Villa vierão esperar huma bandeira de soldados, e alguma gente de cavalo. Ouvio missa na Igreja matriz. Depois de jantar sobio á serra a qual he em extremo alta, e em cima muito chãm e se vê della huma grande parte da terra e a Torre de Beja muy clara; andou El-Rei hum pedaço vendo-a e onde chamam Loja se deceo e esteve bebendo em huma fonte; partio para Villa Nova [de Portimão], onde chegou já de noite, e por todas as janelas avia luminárias que pareciam em extremo bem. Em cima dos muros havia barris de alcatrão acezos, e afortaleza, entrando El-Rei, fez sua salva de artilharia.»
Até aqui tudo bem. Trata-se de uma descrição da viagem, assaz curiosa, porque se percebe que D. Sebastião visitou as termas ou Caldas, ouviu missa na Matriz e subiu à Fóia, onde pôde apreciar a deslumbrante paisagem virada à costa algarvia, mas também o horizonte para nordeste, onde lobrigou a torre da cidade de Beja. A verdade é que o jovem monarca ficou tão encantado com a frescura do clima e as semelhanças ambientais de Monchique com a nobre vila de Sintra, que, segundo revela o cronista, não teve pejo em elevá-la à categoria de Vila, o que deixou enfurecida a vereação de Silves, então a mais antiga cidade do Algarve, que assim se via desapossada de avultados rendimentos e de uma importante fatia do seu território administrativo.
O episódio ficou extratado pela mão de João Cascão nos seguintes termos:
«Monchique he lugar muito fresco, tanto que dizem que pode competir com Cintra; era aldeia de Silves, porque El-Rei fez agora Villa a nomeio. A camara de Silves tomou muito a mala nomeação em Villa e vierão contra isso dar suas rasões a El-Rei, que os mandou receber pelo ouvidor da Corte.»
Foto de 1913, publicada na revista Ilustração Portuguesa
relativa a uma visita de Jornalistas ingleses a Monchique.
Não sabemos ao certo qual o desfecho final deste episódio, mas não é difícil de perceber que no regresso da jornada o Rei tenha arrefecido o deslumbramento dos prazeres da viagem, e se deixasse convencer pelo Ouvidor, que terá esclarecido o monarca sobre os prejuízos de Silves, e certamente sobre a falta de meios dos monchiquenses para sustentarem a Câmara, para a qual talvez lhe escasseassem os povoadores, os rendimentos e até os “homens-bons ou ricos-homens” para uma governação a preceito. O jovem rei D. Sebastião foi magnânimo em diversas ocasiões desta visita ao Algarve, dentre os quais é subido exemplo a elevação de Monchique à condição de Vila. Todavia, não foi capaz de cumprir e manter a palavra, nem o seu desígnio, certamente por falta de meios práticos que viabilizassem um acto de justiça, que viria a ser realizado dois séculos depois, a 16 de janeiro de 1773, por vontade do Marquês de Pombal, e beneplácito do rei D. José I.

sábado, 14 de janeiro de 2023

António Augusto Santos, jornalista, poeta, dramaturgo e... sportinguista

Funcionário dos Caminhos-de-ferro e jornalista, nasceu na vila do Barreiro, a 2-4-1906, e faleceu em Faro, a 2-3-1987, com 81 anos de idade.
Estudou na sua terra-natal, não indo além da instrução primária, embora quem o conheceu, como foi o meu caso, sabe que era um homem bastante culto e muito inteligente, que escrevia primorosamente. Além dessas qualidades intelectuais, era também uma pessoa muito generosa, de bom coração, muito humilde e desprovida de quaisquer vaidades.
Como jornalista distinguiu-se ainda jovem ao fundar e dirigir o «Jornal do Barreiro», um órgão de largas e respeitáveis tradições, em cujas colunas colaboraram distintas figuras da intelectualidade nacional, nomeadamente Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Fernando Namora, Arlindo Vicente, Manuel Cabanas, etc. 
No seguimento do seu múnus profissional desempenhou também as funções de chefe de redacção de «O Ferroviário» órgão sindical daquele notável grupo laboral, com larga expansão e cobertura nacional. 
Por razões de ordem profissional, veio residir para Faro na década de quarenta. E aqui se manteve até ao fim da vida, isto é, durante mais de quatro décadas. Nessa altura, viviam-se os difíceis anos da II Guerra Mundial, e o Augusto Santos começou logo a dar nas vistas, não pelas suas indisfarçáveis qualidades intelectuais, como também pela sua generosidade ao ajudar os seus camaradas mais desafortunados, alguns deles perseguidos por razões políticas, a sobreviverem perante a carestia de vida. As suas preocupações sociais fizeram atrair sobre si a sanha da desconfiança e a passar também um mau bocado. 
Pouco depois de fixar residência, começou a colaborar em quase toda a imprensa algarvia, escrevendo também para os jornais diários e assumindo durante mais de trinta anos a incumbência de ser correspondente em Faro do «Jornal de Notícias» do Porto, de «A Bola», do «Norte Desportivo» e de outros órgãos desportivos. Aliás, o António Augusto Santos ficou conhecido no Algarve como um dos mais experientes e conceituados jornalistas desportivos da região, sendo inclusivamente o seu nome referenciado como uma autoridade nacional, sobretudo na exegese futebolística. Por isso é que o governo o agraciou, julgo que em 1986, com a «Medalha de Mérito Desportivo», exemplo esse que serviu de mote às Câmaras Municipais de Faro e do Barreiro. 
Dirigiu e editou várias publicações comemorativas, nomeadamente o «Anuário Comercial e Industrial de Faro», que teve várias edições, assim como a «Agenda Comercial e Industrial de Faro» (1968), etc. 
Para além de jornalista, foi também um inspirado poeta e um dramaturgo de grande qualidade artística, que passou ao lado de uma notável carreira nas pátrias letras, pois que possuía qualidades para singrar e tornar-se justamente famoso, mercê da grande qualidade evidenciada pela sua obra. 
Dispersou a sua prestimosa colaboração por diversos órgãos da imprensa algarvia, nomeadamente por «O Algarve» de Faro, «Correio do Sul», «Folha do Domingo», «Correio Olhanense», «Povo Algarvio», «Comércio de Portimão», «O Sporting Olhanense», «O Sporting Farense», etc. No semanário farense «O Algarve» publicou, em Março de 1976, um “Pequeno Dicionário Humorístico do Futebol Português” que ainda se lê com proveito de boa disposição. Este órgão farense promoveu-lhe na década de oitenta uma homenagem pública, realizada no salão nobre da Assembleia Distrital de Faro, a qual foi presidida pelo seu amigo, conterrâneo e notável jornalista Manuel Figueira, então a desempenhar as funções de Director-Geral da Comunicação Social, cerimónia a que tive a honra de assistir. Nessa altura, António Augusto Santos foi considerado o decano dos jornalistas da imprensa regional algarvia.
Como escritor julgo que apenas deu à estampa uma pequena peça de teatro, na qual retrata a paixão futebolística sentida por um adepto sportinguista, face ao derby lisboeta disputado numa final da Taça de Portugal, intitulada «Benfica-Sporting – Farsa em um Acto», Faro, Tipografia União, 1958. 
Acresce dizer que António Augusto Santos foi membro fundador da AIRA - Associação da Imprensa Regionalista Algarvia, a cujos corpos sociais julgo que chegou a pertencer, ao lado de Antero Nobre, Joaquim Magalhães, Herculano Valente, Ofir Chagas, João Leal, Reis d’Andrade, e outros. 
Era casado com D. Maria José Santos e foi pai de quatro rapazes, todos cidadãos de primeira grandeza, alguns dos quais se distinguiram, tal como o pai, na imprensa e nas letras em geral. O seu filho mais novo, Dr. Luís Filipe Rosa Santos. notabilizou-se como professor e investigador da história local, além de ser também considerado com um artista plástico de enorme talento. 
Para terminar gostaria de deixar aqui estampado um dos seus muitos e belos poemas, que nunca chegaram a ser compilados em livro, tal como aconteceu com as suas peças de teatro que receio venham a cair num irremediável esquecimento. Este poema tem a particularidade de ser inspirado e dedicado aos seus dois filhos mais novos, sendo por isso intitulado “Dois Irmãos”: 

Eu tenho sobre a estante uma miniatura
Do Mundo – pequenina esfera colorida –
Talvez porque vê nele um mundo de ventura,
Meu filho a veio pedir com voz enternecida

Não porque as suas mãos, pequenas como são,
Pretendam sufocar o «mundo» pequenino,
Mas porque tem do globo uma abstracta noção
E o vê simples brinquedo, afeito a um menino.

Dei-lho. E quando o irmão, sem ter com que brincar,
Surgindo o viu do «Mundo» um senhor poderoso,
Sentou-se junto dele adoçando o olhar
Nesse império-brinquedo, humilde e pesaroso.

Estranhando o pesar do seu melhor amigo,
O mais novinho, então, num terno olhar jucundo,
Disse: - Aqui tens, para brincar comigo!
E estendeu-lhe a mão com metade do «Mundo».

Ao seu gesto inocente achei tanta bondade,
Que pensei noutra esfera, a fim de o premiar;
Merecia até mais tal generosidade
Digno de bons irmãos. Mas, fiquei-me a pensar:

Forçoso é desistir. Se há muito lhes mostrei
Que o «Mundo» se reparte, assalta-me um receio.
Que dor, que mágoa atroz sentiria nem sei,
Se um deles, amanhã quisesse mundo e meio...

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

O ódio nacionalista ao rei D. Pedro IV, nos primórdios do liberalismo português

Após a assinatura da Convenção de Évora-Monte, que em 26-5-1834 pôs termo à guerra-civil, não cessaram os ódios nacionalistas contra os “malhados”, maçons e ateus, epítetos com que designavam os liberais. O principal alvo das invetivas políticas era o “brasileiro”, e “traidor”, D. Pedro IV, que se havia instalado no trono dos seus avoengos antepassados, após ter resignado à coroa imperial do Brasil. A reação expressava-se clandestinamente através de injuriosos pasquins, manuscritos ou impressos em tipografias manhosas, e afixados pela calada da noite nas praças públicas, por forma a perturbarem a opinião e o sossego público, contra a nova ordem política e o primeiro governo liberal, chefiado pelo Duque de Palmela, que foi a mais nobre e prestigiada figura civil do liberalismo português. Este artigo dá a conhecer alguns desses injuriosos pasquins contra o novo rei, D. Pedro IV.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

O primeiro relógio público de Lagoa, adquirido em 1828

 Artigo de investigação sobre o primeiro relógio público comprado pela Câmara Municipal de Lagoa em 1828, através de uma colecta subscrita integralmente pelos moradores daquela vila algarvia. Todavia, a autarquia não tinha meios financeiros para pagar regularmente um salário a alguém que se responsabilizasse pela manutenção desse grande símbolo do progresso e da modernidade, ao som de cujas badaladas passou a regular-se a vida quotidiana dos lagoenses. Esse relógio ainda hoje figura na torre da Igreja Matriz daquela bela e tradicional vila algarvia.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

As instituições reguladoras da Fazenda Pública no Algarve, nos primórdios do Liberalismo

Para os meus alunos, e sobretudo para os jovens investigadores da economia do Algarve, interessados no período iniciático da implantação do Liberalismo em Portugal, aqui vos deixo um pequeno texto de síntese acerca das instituições que regulavam a administração fiscal e os rendimentos da Coroa, destinadas à cobrança dos impostos relacionados com as alfandegas, as actividades comerciais, e a sisa, como imposto indireto que incidia sobre as transações de bens e mercadorias importadas, e sobre os bens de raiz - prédios urbanos e rurais. Também aqui se enunciam e descrevem as justiças que supervisionavam e economia regional.
Os cargos e as instituições que regulavam a cobrança fiscal constituem o objecto deste trabalho. Espero que a sua leitura possa ser útil ao público em geral.

domingo, 18 de abril de 2021

O Terror Miguelista no Algarve - perseguição e devassa

O Algarve, pelo evoluir dos acontecimentos políticos, que marcaram a primeira metade do séc. XIX, constituiu-se numa espécie de enclave revolucionário, liberal-constitucionalista, de apoio e em consonância com a Junta Governativa do Porto. Se tivesse havido melhor coordenação de meios, e sobretudo mais apoio no efectivo castrense, a revolta cartista do eixo Porto-Algarve não teria desembocado no triste episódio da “belfastada”. O fracasso da “Revolta de Maio”, em 1828 no Algarve, contribuiu decisivamente para a usurpação miguelista e para a restauração do absolutismo, cujo clima persecutório acabaria por desencadear a guerra civil.
Na verdade, a prepotência miguelista deixou-se resvalar para os limites da insanidade política, num quotidiano excessivamente repressivo, vedando à nação os seus mais elementares direitos de cidadania. O autismo político do regime absolutista dividiu o país em dois projectos distintos – o do passado tradicionalista, apostólico e legitimista; e o do futuro, liberal, constitucional e parlamentar. A grande diferença entre os dois projectos políticos incidia na concepção e cedência da liberdade, para transformar os vassalos em cidadãos.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Homenagem ao poeta Tito Olívio no Dia Mundial da Poesia e no seu 90º aniversário

Comemorou-se no passado dia 21 de Março o Dia Mundial da Poesia, a par da Primavera, que anuncia o ciclo da regeneração da vida, no brilho do sol, no perfume das flores, e de todas as evidências naturais da esperança, do amor e da fertilidade. São esses, os temas positivos, que mais inspiraram a criação poética. E nós, portugueses, somos um povo de poetas, marcados pelo orgulho da independência e pela glória espiritual da nossa identidade. Soubemos erigir uma pátria, e foi pelo destemor da vontade e da coragem que logramos definir o exíguo quadrilátero a que demos o nome de Portugal. Fomos e continuamos a ser a mais antiga nação da Europa, com nove séculos de existência, mantendo sempre a mesma língua, o mesmo território, a mesma religião e o mesmo povo. Numa época trágica, como a que vivemos hoje, não é um vírus que nos vai abater nem calar, mas antes a falta de coragem, de orgulho, de valentia e de consciência nacional, para nos mantermos unidos e não deixar subjugar aos interesses materiais, o supremo valor espiritual da pátria, erguida com o sangue, as lágrimas e a vida dos nossos egrégios avós. É assim que reza o nosso hino, porque foi assim que se moldou no barro da História, a alma e a estirpe do povo lusíada, disseminado pelos diversos quadrantes geográficos da Humanidade.Nesse lindo dia de sol primaveril, Dia Mundial da Poesia, deste esperançoso ano de 2021, não posso deixar de evocar os Poetas Vivos, porque dos nossos amados vates do passado, todos os dias são de poesia e de saudade. Hoje é dia de reverente homenagem, e de suprema gratidão, para com todos os que entre nós continuam a criar pelo brilho diamantino palavra poética, o cenário idílico da vida, a fantasia do amor e a quimera da felicidade social, que os filósofos e os sábios da humanidade sonharam um dia poder realizar.
Os poetas Tito Olivio, Quina Faleiro e Ferradeira Brito
Hoje quero homenagear os poetas do Algarve, humildes e ignorados, que vivem no remanso da província, sem que as luzes da ribalta se lembrem que eles existem. São tantos que corro o risco de deixar algum para trás de forma injusta e involuntária. Por isso, a todos abraço num fraterno amplexo, dirigido a um só desses talentosos e geniais poetas, que todos respeitam e admiram. Refiro-me ao poeta Tito Olívio Henriques, cuja obra é um marco indelével na poesia portuguesa contemporânea.
Os poetas Nídia Horta, Glória Marreiros e Tito Olívio

Ser poeta é dedicar-se aos outros

O seu talento é muito diversificado, não só no campo da engenharia civil, como na engenharia hidráulica, e até na sociologia, tendo realizado obra material e produção científica, nessas áreas em que desenvolveu a sua actividade profissional. Todavia, o que mais importa realçar na sua já longa existência de quase 90 anos de idade - que completa daqui a dois dias, no próximo 23 de Março -, é a sua dedicação, graciosa e prestativa, aos mais desvalidos e carenciados, alvo preferencial do seu auxílio material e afectivo. Só para termos uma ideia da sua dedicação à sociedade farense, no âmbito do auxílio mútuo, da saúde, da cultura, do desporto, da caridade e até da política, começaremos por ordenar os cargos que exerceu como Presidente: do Sporting Club Farense, da Comissão Municipal de Arte e Arqueologia da C.M.F., da Comissão Administrativa do Sport Faro e Benfica, da Associação de Xadrez de Faro, da Comissão Distrital dos Serviços à Comunidade do Distrito Rotário 1961, e do Rotary Club de Faro (por diversas vezes). Além disso foi Mesário da Santa Casa da Misericórdia de Faro, Vereador da Câmara Municipal, Vice-presidente do Cine-Clube, Secretário da Comissão Distrital de Árbitros de Faro, da Comissão Instaladora do Conservatório Regional do Algarve, técnico responsável pelas obras de restauro do Teatro Lethes, técnico-voluntário do Refúgio Aboim Ascensão, etc. Para não enfadar o leitor, omiti mais de uma dezena de funções prestadas ao serviço da comunidade e do bem comum. Mas não posso deixar de salientar a sua dedicação à delegação de Faro da Cruz Vermelha Portuguesa, de que foi secretário-geral durante vários anos, ao Instituto D. Francisco Gomes, vulgo Casa dos Rapazes, aos Bombeiros Voluntários de Faro de que foi Presidente da Direcção, e ao Conservatório Regional do Algarve - Maria Campina, de que foi Secretário-Geral. Em nenhuma destas instituições auferiu qualquer remuneração, o que é raro acontecer nos tempos que correm.
Glória Marreiros e Tito Olívio, dois expoentes da poesia algarvia

Jornalista, escritor e editor

Na parte que mais directamente se relaciona comigo, posso dizer que o engº Tito Olívio Henriques prestou um serviço inestimável à cultura algarvia. Desde logo porque há mais de cinquenta anos que colabora na imprensa regional algarvia, com artigos em prosa de intervenção cívica. E depois, como dirigente associativo, primeiro da AIRA, da ASORGAL, e, por fim, como Presidente da Assembleia-geral da Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve (AJEA), e como subdirector do «Jornal Escrito» e da revista «Stilus», onde se deram a público importantes trabalhos sobre a história, a etnografia, a economia, a arte e a literatura algarvia. Fundou também a «Tertúlia Hélice», através da qual organizou diversos recitais de poesia em todo o Algarve.
Além da sua dedicação ao serviço social, o poeta Tito Olívio soube evidenciar o seu talento nas diversas áreas da cultura, nomeadamente na arte, participando em exposições de pintura e escultura, e na literatura, colaborando em jornais regionais, e publicando livros. Para isso, fundou a colecção «Cadernos de Santa Maria», integrada na «AJEA Edições», destinada a publicar obras de curta dimensão da autoria de diversos poetas e escritores algarvios.
Tito Olívio e Rocha Gomes, dois grandes poetas e amigos
Falar de alguém com a dimensão intelectual do poeta Tito Olívio é sempre difícil de resumir em breves palavras, razão pela qual me alonguei talvez mais do que a natural paciência do meu leitor. Peço desculpa a quem me lê, mas também ao homenageado, pela minha falta de recursos para poder enaltecer as qualidades e o supremo valor do seu talento literário.
Por isso, encerro este breve apontamento lembrando que a sua obra literária e iniciou em 1963, há quase meio século, com a edição do seu livro O Romance do Homem Solitário, uma colectânea de contos, cuja leitura nos deixa surpreendidos pela forma estilística como supera e transcende o neorrealismo, tão em voga e no agrado político da sua geração literária.
Em jeito de remate final, apresento ao poeta Tito Olívio, cuja vitalidade e genica, tem sido um dos seus mais invejáveis predicados, os meus sinceros votos de muita saúde e de felicidade para os desafios que se irão suceder às 90 primaveras que acabou de completar no passado dia 23 de Março.
Tertúlia Hélice num encontro de poetas em Ayamonte
Bem hajas, amigo Tito Olívio, por tudo o que nos destes e nos ensinastes. Brindei ao teu aniversário, e à distância de um telefonema, porque não te pude abraçar no dia em que certamente mais desejarias ter os amigos por perto. Esta maldita pandemia, e o consequente confinamento a que nos tem sujeitado, consegue-nos separar fisicamente, mas não nos consegue silenciar, e muito menos impedir de te dizer, urbi et orbi, que te admiro muito e que, em qualquer circunstância, estarei sempre ao teu lado.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Aníbal Guerreiro, empresário industrial, escritor e benemérito farense

Aníbal da Cruz Guerreiro, aos 70 anos
Empresário, escritor e jornalista, Aníbal da Cruz Guerreiro, de seu nome completo, nasceu na freguesia da Sé, concelho de Faro, em 1911, e faleceu na mesma cidade a 20-2-1990, com 78 anos de idade.
Frequentou o Liceu de Faro de 1920 a 1927, onde se fez notar pela sua vivacidade e inteligência, colaborando nos jornais estudantis e organizando torneios desportivos. No velho Liceu, que é hoje o edifício da Escola Tomás Cabreira, fez muitas amizades, algumas das quais permaneceram leais até ao fim da vida. Nesse período de juvenil fulgor acalentava a ideia de vir a ser jornalista desportivo, começando então a escrever para alguns órgãos de Lisboa sobre os desafios de futebol aqui disputados pelo Olhanense, pelo Farense e pelo Luzitano de Vila Real.
Não tendo logrado os meios de sobrevivência necessários ao melhor desempenho nos estudos secundários, decidiu pelo trabalho auferir o seu sustento, de forma livre e independente. Enveredou pela vida profissional ligada à indústria de transportes. Como era muito inteligente e perspicaz, decidiu avançar em 1932, com a ajuda doutros sócios fundadores, para a criação da Empresa de Viação Algarve, Ld.ª (E.V.A.). E como necessidade de expansão do negócio, alguns anos depois fundou a Empresa Rodoviária do Sotavento do Algarve. Ambas alcançaram enorme sucesso no sector dos transportes de passageiros e mercadorias, impondo-se entre as melhores do país. Para além disso, criou outras empresas comerciais de pequena dimensão que foi vendendo com o decorrer do tempo. De todas as que fundou ao longo da sua vida mantém-se ainda em laboração a empresa de camionagem, que é uma das maiores do país, e o famoso Hotel Eva, o mais moderno do seu tempo e o importante da cidade de Faro, sendo hoje um dos mais antigos do Algarve.
Caricatura de Francisco
Zambujal
O apelo do jornalismo amador não o largava, pelo que em 1938 fez-se comentador desportivo no semanário farense «Correio do Sul», com uma secção intitulada “Vida Desportiva” na qual dava pormenorizado destaque aos desafios de futebol que se realizavam na província. Isto é notável se tivermos em linha de conta que aquele semanário pelo seu forte pendor cultural, não dava importância ao futebol.
Uma das suas principais paixões era a música, dedicando muito do seu tempo livre à composição e à prática instrumental. Diga-se, em abono da verdade, que era talentoso, mas tinha uma vida profissional muito ocupada, além de que era muito modesto nas suas aspirações artísticas, razão pela qual, apesar de tocar vários instrumentos, nunca chegou a ser conhecido como músico. Em todo o caso, nos Jogos Florais de Tavira, realizados a 31-12-1943, obteve o 1.º prémio na modalidade de “composição musical” com um corridinho do Algarve, cujo júri era presidido pelo famoso maestro da Orquestra Sinfónica Nacional e professor do Conservatório de Lisboa, Eduardo Pavia de Magalhães, o que atesta bem da qualidade da peça vencedora.
Na década de 60, dedicou-se também ao transporte turístico pela província e já como sócio gerente da E.V.A. criou uma carreira diária entre Lisboa e Sevilha, o que sendo notável, para a época, representava também uma grande aposta na implementação do turismo.
Igualmente a Aníbal Guerreiro se ficou devendo a criação de núcleos de apoio social para os trabalhadores da empresa, nomeadamente um refeitório para o pessoal, uma biblioteca e uma Caixa Particular de Auxilio na Doença. Foi sócio fundador e primeiro presidente do Grémio Distrital dos Industriais Hoteleiros e Similares de Faro, que foi a primeira associação de classe dos hoteleiros no Algarve, que por vicissitudes políticas alterou a sua designação para Associação dos Industriais Hoteleiros e Similares do Algarve (AIHSA). Neste sector, Aníbal Guerreiro, tem o seu nome ligado à construção, em 1950, da Estalagem EVA, na vila de Ferreira do Alentejo, e ao Hotel EVA, inaugurado a 1-4-1966, em Faro, e do qual foi administrador até 1974.
Hotel Eva, junto à doca de Faro, inaugurado a 1-4-66
Em 1962 fundou a “Agência de Viagens EVA” e a “EVA rent a car”. Pertenceu como vogal ao Conselho Superior de Transportes Rodoviários, onde se manteve durante vários anos, e aos grupos de estudo e planeamento da Direcção-Geral de Turismo e da Direcção-Geral de Transportes Terrestres, formulando a regulamentação dos Circuitos Turísticos e Agências de Viagens.
Preocupado com a assistência social, desenvolveu acção de assinalável mérito à frente do Instituto D. Francisco Gomes, vulgarmente designado por «Casa dos Rapazes», a cuja direcção pertenceu durante sete anos, mas à qual ficou ligado como benemérito até ao fim da sua vida. Não podemos esquecer que foi Aníbal Guerreiro quem providenciou a obtenção dos meios financeiros que permitiram construir o seu actual magnifico edifício-sede. Para a obtenção desses fundos organizou as «Festas da Cidade de Faro», a cuja comissão promotora presidiu durante vários anos. Foram célebres essas festividades, realizadas por ocasião dos Santos Populares, no Jardim da Alameda. Aqui vinham milhares de pessoas ouvir os artistas mais famosos do país, não sendo rara a presença de Amália Rodrigues e de outros fadistas famosos, assim como de cançonetistas da nova vaga, como António Calvário, Simone de Oliveira, Madalena Iglésias e o hilariante Max, cantor e entertainer madeirense, que deveria ser considerado como um dos fundadores do “stand-up” em Portugal.
O sucesso das «Festas da Cidade de Faro» não estava só na qualidade do repertório artístico, mas também na vontade popular de contribuir para uma obra de grande benemerência social, como era a “Casa dos Rapazes”, oficialmente designada por Instituto D. Francisco Gomes. O êxito era tal que praticamente aquela instituição vivia do apuramento financeiro das festividades, das quotizações dos sócios beneméritos e de algumas multas de trânsito que o chefe da P.S.P. na cidade mandava reverter a favor dos pobres rapazes. E note-se que daquelas crianças desvalidas se educaram e formaram muitas dezenas de homens válidos, honrados profissionais e não raros empresários de sucesso, que ainda hoje muito enobrecessem a cidade de Faro.
Acresce dizer que o sucesso das «Festas da Cidade» deveu-se não só ao entusiasmo de Aníbal Guerreiro, mas também à protecção e incentivo do Dr. Gordinho Moreira, então presidente da edilidade, que disponibilizava a logística camarária para garantir o conforto e segurança do público. Mas o que mais celebrizou essas festividades foi a criação das famosas Marchas Populares, que eram inspiradas nas de Lisboa, mas que em si constituíam uma manifestação artística e uma clara afirmação do bairrismo farense. Note-se que o desfile de cada marcha era escrutinado por um júri competente que escolhia a vencedora, pela criatividade artística da dança, da música e da beleza da indumentária.
Os poetas locais escreviam as letras das marchas, cabendo talvez o maior número de vitórias ao inspirado major Victor Castela, que foi um dos mais célebres poetas do seu tempo. Além disso tinha um coração de oiro, nunca dizia que não a um pedido das gentes do povo, e era um grande apaixonado pelos Santos Populares. Nessa altura, as Marchas Populares representavam não só os bairros populares da cidade como também das freguesias do concelho. Lembramos por exemplo a participação das Marchas do Alto Rodes, das Pontes de Marchil, do Montenegro e da Bordeira, que ganhou o concurso em Junho de 1962. A Taça do 1.º Prémio das Marchas era um trofeu de primeiríssima honra para os vencedores, havendo ainda hoje alguns desses trofeus nas sedes das juntas de freguesia do concelho.
Sports do Algarve, fundado por A.G.
No campo do jornalismo deveu-se a Aníbal Guerreiro a fundação, em 14-10-1935, do semanário desportivo farense, «Sports do Algarve», que ele próprio dirigiu e financiou até à extinção, em 9-5-1938. Este órgão de imprensa é hoje uma fonte privilegiada para o estudo do desporto e do futebol algarvio nos anos que precederam a II Guerra Mundial. Por outro lado, contém informação sobre desporto escolar e sobre diversas actividades da recém-criada Mocidade Portuguesa. Para além dessa fase inicial de jornalista desportivo, Aníbal Guerreiro dispersou a sua prestimosa colaboração por diversos órgãos da imprensa algarvia, nomeadamente «O Algarve», «Correio do Sul», «Algarve Desportivo» (1987), etc. Escrevia com elegância e erudição, em bom estilo literário, muito correcto e delicado, mesmo quando era preciso ser acintoso na crítica. Na maioria dos seus artigos notava-se a sua paixão algarvia, e no brilho da sua pena ressaltava a preocupação do futuro, muito particularmente no sector emergente do turismo, a que estava ligado e conhecia bem, sobretudo na necessidade de construir novas e modernas infraestruturas, nomeadamente um aeroporto em Faro – como aliás viria a ser realizado em 1965 – de se melhorar a revê viária para Lisboa e Sevilha (estradas e, caminhos de ferro), de se erigirem novos hóteis em todo o litoral algarvio, de se construir o novo porto de Faro-Olhão (o que foi feito), de se criarem escolas para a instrução das modernas técnicas de turismo, à imagem do que acontecia em França e na Suíça. A forma como abordava esses problemas e como elaborava uma estratégia para a sua solução era tão clara que parecia evidente e exequível. Porém, tudo isso esbarrava na realidade (tanto de ontem como de hoje), isto é, na condição socioeconómica do Algarve, enquanto região periférica, para a qual nenhuma razão se tornava óbvia para fazer convergir o investimento público.
Desde sempre ligado ao sector da cultura, Aníbal Guerreiro pertenceu aos corpos directivos do Conservatório Regional de Música do Algarve, e, no que toca ao fomento desportivo, foi presidente do Sporting Clube Farense, e durante vários anos presidiu à Assembleia Geral do clube. Também foi presidente da Associação de Futebol de Faro, cuja designação localista conseguiu alterar para Associação de Futebol do Algarve.
Primeira excursão turística da EVA, em 1934
Diga-se de passagem, que Aníbal Guerreiro tinha a paixão da música e tocava inclusivamente alguns instrumentos por intuição natural, pois julgo que nunca chegou verdadeiramente a receber lições de solfejo. Em todo o caso, esse amor pela música terá sido o principal motivo que o levou a encarar com tanto fervor a fundação do Conservatório Regional de Música do Algarve, cabendo-lhe a honra de ter conseguido convencer as autoridades a consentirem na sua fundação. Segundo creio foi também dele a ideia de convidar a artista Maria Campina e outros músicos, como o Diamantino Piloto, para ensinarem naquele estabelecimento.
Nos últimos anos de vida colaborava com bastante intensidade na imprensa regional, especialmente no semanário farense «O Algarve», onde manteve a secção «Crónicas Algarvias», que tiveram numerosa audiência não só pela sua elevação sociopolítica como principalmente pela sua qualidade literária. Pouco antes de falecer, publicou em Novembro de 1989 livro as suas apreciadas «Crónicas Algarvias», que saiu a público com o título Esboços de um Algarve Menor. Assisti ao lançamento do livro no Hotel Eva, recebendo da sua mão um exemplar com uma bonita dedicatória e pelo Natal, como era costume, recebia sempre em minha casa uma tarte de amêndoa, que era o seu “foro natalício”, como ele gostava de dizer, em retribuição da minha colaboração na revisão do seu primeiro livro sobre a História da Camionagem. Depois disso encontrávamo-nos pontualmente num ou dois momentos de carácter cultural, até que a notícia da sua morte me colheu de surpresa.
A Câmara Municipal de Faro, em reconhecimento dos bons serviços prestados à cidade, e como forma de gratidão pelas suas acções de benemerência pública, atribuiu-lhe as medalhas de Mérito Municipal (grau prata), em 1982, depois reconfirmada, mas no grau ouro, em 1986. Por sua vez, a Secretaria de Estado do Turismo atribui-lhe a medalha, no grau prata, de Mérito Turístico, pela sua visão precoce e inovadora em prol do desenvolvimento no sector dos transportes, do investimento hoteleiro e do turismo em geral.
Dedicatória de Aníbal Guerreiro
Como escritor e profundo conhecedor do sector do turismo e dos transportes no Algarve, publicou as seguintes obras:
História da Camionagem Algarvia (de passageiros) 1925-1975 (da origem à nacionalização), edição do autor, Faro, 1983; Turismo, Estradas e os problemas, presentes, no Algarve, ed. do autor, Faro, 1984; Esboços de um Algarve menor, edição do Instituto D. Francisco Gomes, Faro, 1989. Publicou também um opúsculo muito interessante, destinado como oferta natalícia aos amigos, intitulado Natal dos Benditos Desditosos, ed. do autor, 1985.
Para terminar, resta-me acrescentar que como elemento da Comissão de Toponímia de Faro, tive a honra de atribuir o nome de Aníbal da Cruz Guerreiro à avenida que vai desde a rotunda da Biblioteca Municipal até desembocar na estrada do Moinho da Palmeira.